ENTRETENIMENTO A SERVIÇO DA EDUCAÇÃO E DA ESPIRITUALIDADE

GERSON TEIXEIRA

ENTREVISTA

Por Fernando Passarelli

O Gerson Teixeira é roteirista de quadrinhos desde 1977. São 45 anos na criação de enredos para Disney, Turma do Arrepio, Fofão, Trapalhões, Maurício de Sousa, Lulu & Bolinha, Gugu, Sérgio Malandro, He-Man e outros. São milhares e milhares de roteiros, que representam o tamanho do talento – e da simpatia – do Gerson. Em 2022 ele lançou o livro “Minha História nos Quadrinhos”, que já é leitura obrigatória para quem quer trabalhar no meio. Isso porque o Gerson conta muito da sua experiência e relembra passagens fantásticas na redação Disney na Editora Abril, o processo de aprendizado dele, os dilemas e desafios da profissão e traz, ainda, dicas para quem quer escrever e desenhar. O Gerson falou mais de uma hora para o Deus no Gibi. Acompanhe os melhores trechos:

DEUS NO GIBI – Existe uma geração imediatista, que assiste quantos episódios de uma série desejar e que lê ou baixa quadrinhos quando quer. Isso gera uma impaciência com o processo lento de aprendizado na produção de quadrinhos.

GERSON TEIXEIRA – Eu acho que os jovens estão mais imediatistas do que nós fomos, mas lembro que a gente era também queria as coisas rápido. Quando o primeiro teste que eu fiz foi aprovado, a história “O Outro Lado do Meio Dia”, do Morcego Vermelho, ela tinha 4 páginas e voltou com um monte de erros. Eu ampliei, acho que para 5, e voltou de novo com uma série de correções. Acabou ficando acho que com 6, se não me engano. Eu lembro que foi aprovada e fiquei super feliz! Eu era trainee de arte, ia virar roteirista. E fiquei numa angústia tal, que eu lembro que o Primaggio Mantovi, o diretor da redação Disney, veio com a notícia que um outro colega de trabalho havia sido promovido para argumentista, que era como se chamava o roteirista na Abril, e eu falei “era pra ser minha essa vaga e acabou indo para o outro, e eu não vou conseguir”, aquela coisa. Sendo que pouco tempo depois eu acabei virando roteirista também, e fui roteirista durante todo o tempo que fiquei na Editora Abril. Mas foi uma angústia pra mim. Então, a turma hoje é mais imediatista, mas a gente também foi. O jovem é.

DEUS NO GIBI – Quantos anos de carreira você trilhou até poder dizer: “eu consigo escrever uma boa história em quadrinhos”?

GERSON TEIXEIRA – Isso é relativo, toda história é como um filho nosso. A maioria a gente gosta. O que me orientava naquela época era a avaliação do Primaggio. Tinha história que ele achava boa, tinha história que ele achava mais ou menos, até que a minha sétima história, pelo jeito, ele achou muito boa. Porque ele inscreveu no Prêmio Abril de Jornalismo e eu acabei ganhando. Eu tinha um ano e meio, não tinha nem dois anos de casa, de contratado, e já tinha meu primeiro Prêmio Abril de Jornalismo. Eu não tenho uma régua; a partir daqui uma história é ótima, a partir daqui é regular. Eu faço as histórias, tento colocar todos os ingredientes que tenho disponível para fazer o melhor possível. Pra você ter uma ideia, eu escrevi as duas graphic novel da Disney. Uma é aquela do Pato Donald, que eles viajam num grão de areia, explorando a ideia que o infinito tanto vale para o lado de fora, como para o lado de dentro. Todo mundo adora essa história, e eu nem lembro mais! Ela já foi até exposta numa exposição que contava a história dos quadrinhos no Brasil! Outro dia um amigo meu, num grupo Disney, falou que a história era ridícula…. É muito subjetivo, né? Pelos padrões da Editora Abril eu levei uns 6 meses até conseguir fazer a história que eles consideravam boas.

DEUS NO GIBI – Você foi incumbido de fazer as primeiras histórias do Biquinho, o sobrinho do Peninha, quando ele ainda nem tinha nome. No livro, você diz que “as histórias escorregavam fácil pela ponta do lápis!” Como é isso?

GERSON TEIXEIRA – Tem personagens com os quais a gente se identifica. As histórias do Peninha, do Zé Carioca, esses personagens são muito bem construídos e dão ganchos de criação muito bons. No caso do Biquinho, quando ele surgiu a gente também bolou bastante coisas, traços de personalidade fortes, o que deu pra explorar muito bem. O que ajudou também é que eu tinha um filho na idade dele e acompanhei muito o que acontecia. Era muito bom escrever as histórias do Biquinho. E também do Peninha, Zé Carioca e do Urtigão. Tem histórias que acontecem sozinhas praticamente. Você pega um personagem e joga numa situação. Aí você mesmo se desafia: “se vira, vê o que vai acontecer aí”. Eu tenho mais ou menos essa dinâmica. Tem personagem que parece que se vira sozinho, é meio que previsível o que vai fazer. O Peninha, você joga ele numa situação e sabe que ele vai arrumar alguma encrenca, porque é sem noção. E foram muitos os personagens legais que fiz nesses anos. Mais recentemente eu gosto muito do Chico Bento e um amigo dele que é muito sem noção, o Zé Lelé, e o Cascão. Então, tem história que o personagem parece que está dentro do lápis esperando pra pular pra fora.

“Tem histórias que acontecem sozinhas praticamente. Você pega um personagem e joga numa situação. Aí você mesmo se desafia: ‘se vira, vê o que vai acontecer aí’.”

DEUS NO GIBI – Você fala, no seu livro, de atualizações em personagens para os quais escreve, com mudanças de jeitos, falas, “tudo que sempre foi usado”.

GERSON TEIXEIRA – O Brasil, como o mundo, nestes últimos 20 anos, sofreu uma mudança profunda do politicamente correto. Se você pegar um episódio dos Trapalhões, na televisão, você pode ficar horrorizado de ver como eles exploravam o conteúdo sexual, com racismo, sem respeitar nada. Era politicamente incorreto no geral. Na adaptação para os quadrinhos, a gente, já naquela época, deu uma maneirada no que eles faziam. Isso foi acontecendo, vindo para os quadrinhos. Já nos anos 80, na Abril, os grupos feministas contavam quantas personagens femininas apareciam nas revistas. Teve uma vez, eu lembro bem disso, que a Associação Israelita processou a editora porque usaram numa história a expressão “judiação”. E isso naquela época, que nem era o politicamente correto que é hoje. O exemplo da Disney mais crítico desse politicamente incorreto é o Zé Carioca. O Zé Carioca dos anos 60, 70, 80, ele sempre foi um malandro. O cara era desonesto, aplicava golpe, vendia o bondinho do Pão de Açúcar para os gringos. Na época a gente já teve que dar uma amenizada. Agora, nessa fase da Culturama, que participo de uns 2 anos pra cá, não pode de jeito nenhum que ele seja desonesto. Ele pode pegar uma jaca na árvore do Pedrão, pegar comida, coisa de malandro, mas não desonesto. É o cara folgado. Então, o roteirista tem uma tarefa complicada, tem que ficar pegando as características do personagem e adaptando para as mudanças da sociedade.

DEUS NO GIBI – Nas dicas do seu livro, você fala para o roteirista usar “três linhas de texto ou quatro” no balão. Qual a importância disso?

GERSON TEIXEIRA – Eu aprendi isso a duras penas, sendo zoado pelo Carlos Edgard Herrero, que uma vez disse: “e eu vou desenhar onde, na bunda?”, pela quantidade enorme de texto que coloquei nos balões da minha primeira história. Hoje eu pego alguns álbuns, principalmente dos anos 60, e é um absurdo a quantidade de texto. Não tem lugar para o desenho. Só falta o personagem ficar com a barriga encolhida, esmagado! Então, no máximo, estourando, 4 linhas de texto. Mas o ideal é fazer 3 linhas. E se o balão estiver grande, você pode dividir no mesmo quadro ou por reticências e jogar o restante do texto em outro quadro. Você continua o seu pensamento, só que aí você muda a angulação da cena, pra não ficar uma coisa repetida. Outra coisa que eu falo no livro é que tem que ter uma dinâmica entre os quadros. Se você fizer todos os quadros com todos os personagens de corpo inteiro, você tem uma página pouco interessante visualmente. Então, você pega uma página e num quadro faz uma panorâmica, com os personagens andando de corpo inteiro. Em outro, você coloca o personagem da metade do corpo pra cima. No próximo, coloca um close. E aí você tem uma página visualmente mais agradável.

DEUS NO GIBI – Seria possível percorrer todo o caminho da sua carreira se você não desenhasse e entregasse o argumento das histórias apenas por escrito?

GERSON TEIXEIRA – Olha, ia ser mais complicado, nem chegaria onde eu cheguei. Mas a minha intenção era ser desenhista, eu já rabiscava desde criança. Lembro do caso de um roteirista veterano, um dos principais criadores da casa, que entregava alguns roteiros apenas no texto corrido. Os desenhistas não gostavam, porque quando você faz assim, você não tem uma noção perfeita do que acontece. Eu lembro muito bem de uma situação que, no roteiro escrito, ele descrevia uma cena impossível de ser reproduzida no desenho. Então, o desenhista teve que pedir para ele alterar, porque era um negócio que envolvia um elevador, que tinha que olhar por dentro, por cima… A turma reclamava, o roteiro escrito não era visto com bons olhos.

DEUS NO GIBI – Você trabalhou na época das redações de quadrinhos, convivendo com diversos profissionais. Hoje muitas pessoas trabalham em suas casas. Além das memórias fantásticas, o que se perde com essa falta de convivência?

GERSON TEIXEIRA – Eu tive sorte de participar do que chamam hoje de época de ouro da Disney no Brasil. Na época, não se tinha essa noção! A gente ia lá trabalhar e nem sabia disso, achava bacana. Era agradável, divertido. Mas não foi o tempo todo. Eu trabalhei 20 anos na editora Abril. Desses, 10 pelo menos eu fiquei dentro de casa. A gente praticamente inaugurou esse home-office que existe hoje. Mas o tempo que eu fiquei interno foi muito bom. Eu acredito que ajudou muito na minha evolução do humor, porque a gente fazia muita piada, tudo virava brincadeira. Hoje eu vejo o número de páginas que eu escrevi na Abril e penso, caramba, como foi que eu consegui? Porque a gente fazia muita zona e mesmo assim conseguia entregar uma produção bacana. Mas chegou uma época que alugaram um prédio na Marginal Pinheiros e jogaram todo mundo lá, virou o prédio da Abril. Eu já morava nessa época em Ribeirão Preto (SP), ia lá visitar a redação, e não era a mesma coisa. Cada um na frente do seu computador, já como são as redações hoje. Não é o mesmo clima que a gente teve na Abril nos 10 primeiros anos.

“Eu tive sorte de participar do que chamam hoje de época de ouro da Disney no Brasil. Na época, não se tinha essa noção! A gente ia lá trabalhar e nem sabia disso, achava bacana.”

Glorijane, criação do Gerson

DEUS NO GIBI – Para qual personagem gostaria de ter escrito uma história?

GERSON TEIXEIRA – Os personagens do Ziraldo. Ele esteve no lançamento de um livro meu e falou: “Pô, cê nunca escreveu pra mim, né?”. E eu falei: “Não, vamos combinar, ver se dá certo!”. E acabou não rolando. Agora estão retomando os personagens do Ziraldo, tanto a Turma do Pererê, quanto o Menino Maluquinho, e me perguntaram se eu topo fazer parte da equipe. Claro! Não precisa falar duas vezes! No Brasil, seria isso. E eu já tive muito a fim de escrever algo do Asterix. Até tive uma ideia, mas era coisa de moleque mesmo. Mas eu gostaria, nem que fosse só pra mim, de fazer uma história do Asterix.

DEUS NO GIBI – O que você tem lido atualmente?

GERSON TEIXEIRA – Sobra muito pouco tempo para leitura. O tempo que sobra eu tenho que ler as histórias que vem do estúdio do Maurício e eu não posso deixar de ler livros. De vez em quando cai na minha mão alguma graphic novel, que ganho de aniversário, coisas assim. No momento estou relendo Cem Anos de Solidão (Gabriel García Márquez). Quadrinhos de super-herói eu nunca curti, nem perco tempo. Sempre achei que os super-heróis são o tipo da novela que se você pega pela metade não entende nada.

DEUS NO GIBI – Por último, se pudesse ter um super poder, qual seria?

GERSON TEIXEIRA – Ah, com certeza seria voltar no tempo e viver tudo de novo. Eu me sinto uma pessoa privilegiada por ter conseguido fazer o que eu sempre sonhei e gostei, por me manter esse anos todos exclusivamente com isso. Fiz alguma coisa por fora, mas basicamente o que me sustentou até hoje foram os roteiros de quadrinhos.

 

Dezembro de 2022